O Evangelho de Judas e o Testamento
de Joaquim Silvério dos Reis (Parte I)

de Dennis Downing

“Atenção! Foi encontrado esta semana no porão de uma casa abandonada em São João del Rei, Minas Gerais, o testamento de Joaquim Silvério dos Reis. Segundo o documento, foi o próprio Joaquim José da Silva Xavier, ou “Tiradentes,” que havia pedido ao então amigo, Joaquim Silvério, que o traísse. O motivo seria para provocar com o martírio de Tiradentes uma reação entre o povo que levaria a revolta da Inconfidência Mineira a uma dimensão nacional. O documento, datado pelas autoridades competentes entre os anos 1890 e 1900, é considerado uma descoberta de valor incalculável, pois poderá levar à revisão de alguns princípios importantes da história do Brasil. Será que o Joaquim Silvério, ao invés de ser o traidor de Tiradentes, teria sido seu fiel colaborador? Será que a condenação desta figura foi de fato um erro trágico da história? Mais detalhes na próxima edição de sua revista eletrônica semanal!”

Certamente, ao se deparar com a “reportagem” acima, qualquer cidadão que prestasse atenção teria reparado na data do “documento histórico” – entre 1890 e 1900. Segundo a história, Tiradentes morreu em 1792, ou seja, cem anos antes do alegado “testamento de Joaquim Silvério dos Reis” ter sido escrito. Embora um documento “histórico” alegue revelar detalhes até então escondidos, é fundamental se perguntar primeiro sobre a credibilidade desta fonte. Será que a imprensa daria importância a um “testamento” como este? Ou, não iriam exigir que fossem apresentadas evidências convincentes de que este documento realmente tinha ligação direta com as figuras históricas citadas, já que o “testamento” pode mudar radicalmente a percepção de figuras históricas?

Este “detalhe” parece ter escapado aos repórteres dos jornais e “revistas eletrônicas” que deram destaque recentemente ao chamado “Evangelho de Judas”. Apesar do chamado “Evangelho de Judas” ter sido escrito cerca de 200 anos após a vida de Jesus, os repórteres indagaram se não promoveria uma revolução no Cristianismo. O “Jornal da Globo” na sua reportagem declarou “Teria sido Judas o melhor discípulo, e não o traidor de Jesus Cristo? Uma descoberta arqueológica, apresentada nesta quinta-feira, ressuscitou uma discussão milenar.”

O site da National Geographic – Brasil começa sua reportagem com as seguintes palavras sugestivas: “Esta é uma revelação que com certeza vai suscitar discussões acaloradas: De acordo com um texto antigo recém-descoberto, o chamado ‘Evangelho de Judas’, o discípulo conhecido por ter traído Jesus pode ter sido o servo mais fiel do Cristo e ter aceitado a desgraça perpétua por levá-lo à morte – devido a um pedido do próprio Salvador.” Houve, mais uma vez, questionamento das bases da fé Cristã, como se qualquer documento antigo valesse para por em cheque a veracidade dos relatos bíblicos sobre a vida de Jesus.

Uma breve análise dos fatos revelaria que não há motivo algum para confiar no suposto “Evangelho de Judas”. Aos fatos. O documento intitulado “O Evangelho de Judas” anunciado com grande alarde pelo National Geographic Society é um códice (ou seja, um documento em forma de livro e não um manuscrito em forma de rolo) de 23 folhas de papiro escrito em copta. De acordo com o site do National Geographic, a data do manuscrito, usando os métodos tradicionais como carbono 14 e paleografia, foi estimada entre o terceiro e quarto séculos.

1. Data do manuscrito 

É importante lembrar que o documento datado entre o terceiro e quarto séculos foi escrito pelo menos 200 anos depois dos fatos históricos que supostamente trata. O próprio site da National Geographic Society demonstra que, analisado do ponto de vista da paleografia, o estudo de antigas formas de escrita, o documento seria datado em torno do ano 400, ou seja, o início do quinto século. O professor Stephen Emmel, perito em copta da Universidade de Munster, comparando o suposto “Evangelho de Judas” com os documentos da seita gnóstica de Nag Hammadi declarou “minha inclinação imediata seria dizer que o Evangelho de Judas foi escrito por um escriba naquele mesmo período, vamos dizer cerca do ano 400”.

Copta, o dialeto do chamado “Evangelho de Judas” começou a ser usado no Egito em torno do ano 200. Foi em copta que os manuscritos gnósticos de Nag Hammadi foram escritos. Estes são datados seguramente entre o terceiro e quarto séculos. O professor Stephen Emmel, destacou a semelhança entre o estilo de escrita do “Evangelho de Judas” e os documentos gnósticos de Nag Hammadi. A evidência científica, portanto, indica que o documento pode ser ainda mais distante dos dias de Jesus, talvez de um período entre os anos 300 e 400. Ou seja, o documento sobre o qual tanta especulação a respeito do “verdadeiro Judas” está sendo levantada, possivelmente teve sua origem cerca de 200 anos depois que Judas morreu.

2. Ligação com citação de Irineu 

Irineu, um teólogo respeitado do segundo século, demonstrou conhecimento de um suposto “Evangelho de Judas” cerca do ano 180 d.C. Alguns estudiosos alegam que o códice em copta descoberto recentemente seria uma cópia do documento ao qual Irineu se referiu, aproximando assim o suposto “Evangelho de Judas” ao período histórico em que o verdadeiro Judas viveu.

Primeiro, Irineu, em sua referência, não citou nem uma frase do documento, de tão profundo seu desprezo pelo seu conteúdo. Portanto, não há como afirmar que o “Evangelho de Judas” ao qual Irineu se referiu, e o documento analisado pela National Geographic Society sejam os mesmos. Qualquer afirmação neste sentido é pura especulação.

Segundo, embora pudessem ser provados os mesmos, temos ainda o fato que Irineu também não era contemporâneo dos personagens principais – Jesus e Judas. Irineu nasceu cerca de cem anos após a morte de Cristo. Portanto, cronologicamente, qualquer documento que Irineu tivesse conhecido ainda estaria pelo menos cem anos distante dos dias de Jesus e do suposto autor, Judas.

3. Autoria do documento 

É importante reconhecer que o suposto “Evangelho de Judas” provavelmente não tem nenhuma ligação com o Judas histórico e muito menos com o próprio Jesus. É bem provável que este documento tenha sido fruto do fenômeno de pseudonímia, prática relativamente comum nos primeiros séculos. Esta prática envolvia o uso de nomes de personagens famosos para emprestar credibilidade a documentos, inclusive “evangelhos”, cujo conteúdo teria sido totalmente ignorado, se não fosse o uso de uma autoria falsificada.

Em relação a esta prática, o perito Ben Witherington observou “A pseudonímia era uma prática daqueles que não tiveram autoridade suficiente por si mesmos para criar textos sagrados e por isso pegaram ‘emprestado’ o nome de uma figura anterior ilustre, ou neste caso notória, para criar o ar de um documento de testemunha ocular autêntico. Precisa ser dito que esta prática era muito claramente denunciada não só por pais de igreja, como Tertuliano, Irineu e Hipólito, que nos falam sobre monges e padres sendo expulsos por ter inventado documentos desta natureza, mas no mundo Greco-romano maior havia várias pessoas que lamentaram esta prática e viram isto como uma forma de decepção e fraude. Por exemplo, Cícero e Quintiliano se queixam de pessoas criando documentos em nome deles, mas, com os quais eles não tiveram nada a ver. Havia, de fato, um problema moral com tais documentos naquela época, como agora. Não era um ‘prática literária aceitável daquela era’ como alguns poderiam nos levar a acreditar.” [Traduzido de um artigo de Ben Witherington sobre o suposto “Evangelho de Judas”.]

Se foram produzidos documentos usando falsamente os nomes de figuras ainda vivas que podiam se defender, imagine com pessoas já falecidas. É preciso lembrar que falsificações no meio arqueológico, sobretudo quando se trata de material ligado a assuntos bíblicos, não é novidade. Em 2002 foi exibida com alarde semelhante ao suposto “Evangelho de Judas” uma caixa de calcário que, segundo análise da época, teria sido o ossário de Tiago, irmão de Jesus. A própria National Geographic Society noticiou a “descoberta”. Menos de um ano depois a mesma organização teve que também citar fontes de renome como a Autoridade de Antiguidades de Israel que pronunciaram a “descoberta” como falsificada. O ossário teria idade da época de Jesus, mas a inscrição, se referindo a Tiago, filho de José, irmão de Jesus, teria sido forjada nos últimos anos.

As falsificações e enganos existiram nos dias de Jesus e continuam ludibriando leigos e até peritos ainda hoje. Qualquer confiança colocada nas palavras de um homem tido como traidor pelos companheiros mais próximos é, no mínimo, arriscada. De fato é bem provável que nem foi o próprio Judas que escreveu ou revelou o conteúdo do suposto “Evangelho de Judas”.

4. Autenticidade do documento 

Embora algumas reportagens fizeram questão de dizer que o documento foi “autenticado”, na verdade a única coisa que os peritos podem autenticar é a data que, como vimos, só pode ser estimada entre o terceiro e quinto século. Avaliando todas as datas propostas pelos peritos, dificilmente o códice teria sido escrito com menos de 200 anos após a vida de Jesus. A única coisa que esta “autenticidade” prova é que o documento foi produzido pelo menos 200 anos após a morte do seu suposto autor, Judas. Não há nenhuma prova concreta de que este documento é uma cópia de algo que podia ser escrito pelo verdadeiro Judas. Pelo contrário, as evidências existentes indicam que o documento teria sido produzido pelo menos um século após a morte de Judas.

 


Em Parte II examinaremos o conteúdo do “Evangelho de Judas” em comparação com os Evangelhos da Bíblia.

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04/05/06

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