DEVO APRENDER A COMO INTERPRETAR A BÍBLIA?

de D. A. Carson

A hermenêutica é a arte e ciência da interpretação; a hermenêutica bíblica é a arte e ciência da interpretação da Bíblia. Na época da Reforma, debates sobre interpretação ocuparam um papel enormemente importante. Estes foram debates sobre “interpretação”, não apenas sobre “interpretações”. Em outras palavras, os reformadores discordavam de seus oponentes não apenas sobre o que esta ou aquela passagem significava, mas também sobre a natureza da interpretação, o lugar da autoridade na interpretação, o papel da igreja, do Espírito na interpretação, e muito mais.

Ao longo da metade do século passado, tantos desenvolvimentos aconteceram no campo da hermenêutica que este seria um artigo longíssimo, mesmo que fosse apenas um esboço superficial. É triste dizer que hoje em dia muitos estudiosos estejam mais interessados nos desafios da hermenêutica, do que na interpretação da Bíblia; é a própria Bíblia que a hermenêutica nos deveria ajudar a tratar com mais responsabilidade. Por outro lado, um tanto ironicamente, ainda há pessoas que pensam que há algo levemente vulgar sobre interpretação. Sem ser muito grosseiro em dizer tal coisa, estas pessoas secretamente sustentam a opinião de que o que outros oferecem são interpretações, mas o que eles próprios oferecem é apenas o que a Bíblia diz.

Carl F. H. Henry amava dizer que há dois tipos de pressuposicionalistas: aqueles que admitem uma pressuposição e os que não admitem. Nós podemos adaptar esta análise ao nosso tópico: há dois tipos de praticantes da hermenêutica: aqueles que a admitem (que praticam a hermenêutica) e aqueles que não admitem. Pois a verdade da questão é que todas às vezes que descobrimos alguma coisa na Bíblia (quer isto esteja lá ou não!) estamos interpretando a Bíblia. Há boas interpretações e há más interpretações; há interpretações fieis e há interpretações infiéis. Mas não há como fugir da interpretação.

Aqui não é o lugar para se apresentar os princípios fundamentais ou para lidar com a “nova hermenêutica” (que agora já está se tornando velha) e com a “hermenêutica radical” e a “hermenêutica pós-moderna”. Para obter mais informações e uma bibliografia sobre os tópicos, especialmente suas relações com o pós-modernismo e como ter uma resposta para tais veja meu livro: “A Mordaça de Deus: o Cristianismo Confronta o Pluralismo”, especialmente capítulos 2 e 3 (“The Gagging of God – Christianity Confronts Pluralism” Grand Rapids, Zordervan, 1996). Eu enfocarei, pelo contrário, em um “simples” problema; um problema com o qual todo leitor sério da Bíblia confronta-se ocasionalmente. A questão é esta: quais partes da Bíblia são mandamentos obrigatórios para nós, e quais partes não são?

Considere alguns exemplos: “Saúdem uns aos outros com ósculos santos”. Os franceses o fazem, e também os crentes árabes, mas longe de nós termos tal prática. Somos, portanto, não-bíblicos? Jesus diz aos seus discípulos que eles deveriam lavar os pés uns dos outros (João 13:14), mesmo assim a maioria de nós nunca teve tal prática. Por que “desobedecemos” uma injunção tão plena, mas mesmo assim obedecemos a sua injunção com relação à Ceia do Senhor (“Fazei isto, em memória de mim”)? Se descobrirmos razões suficientes para sermos flexíveis sobre o “ósculo santo”, quão flexível devemos ser quanto a outras áreas? Podemos substituir o pão e o vinho da Ceia do Senhor por batata e leite de cabra, se estivermos em uma igreja de um vilarejo na Nova Papua Guiné? Se não, por que não? E o que dizer de questões mais abrangentes circulando entre teonomistas com relação à continuidade da força legal estabelecida pela aliança mosaica? Devemos como uma nação passar leis para a execução de adúlteros por meio do apedrejamento, sobre a pressuposição de que Deus graciosamente conceda ampla reforma e reavivamento? Se não, por que não? A injunção para que as mulheres permaneçam em silêncio na igreja é absoluta (1 Cor 14:33-36)? Se não, por que não? Jesus diz a Nicodemos que ele deve nascer de novo, se ele quiser entrar no reino. Jesus diz ao jovem rico que este deve vender tudo que tem e dar aos pobres. Por que fazemos absoluto o primeiro mandamento a todas as pessoas, e aparentemente evitamos um pouco o segundo?

Obviamente, eu levantei questões o bastante para escrever uma dissertação ou duas. O que se segue neste artigo não é uma chave exaustiva a fim de responder a todas as questões interpretativas difíceis, mas algumas linhas preliminares a fim de colocar as coisas mais em ordem. A seqüência numérica não foi posta em qualquer ordem de importância.

I. Faça o Possível, Conscientemente, Para Manter o Equilíbrio das Escrituras, e Evitar Sucumbir a Disjunções Históricas e Teológicas.

Os liberais têm nos dado com freqüência disjunções sórdidas: Jesus ou Paulo, a comunidade carismática ou a igreja “católica primitiva”, e assim por diante. Os protestantes às vezes fazem uma distinção entre a fé sem obras de Paulo (Rom 3:28) e a fé com obras de Tiago (Tiago 2:4); outros absolutizam Gal 3:28, como se este fosse a passagem que controla todas as questões relacionadas às mulheres, e passam horas sem fim tentando se livrar de 1 Tim 2:12 (ou o contrário!).

Historicamente, muitos batistas reformados na Inglaterra, entre os meados do século 18 e meados do século 20, enfatizaram tanto a graça soberana de Deus na eleição que eles ficaram desconfortáveis com afirmações gerais do evangelho. Não se deveria dizer aos descrentes para se arrependerem e acreditarem no evangelho: como poderia ser isto, visto que estão mortos em seus pecados e transgressões, e talvez possam de qualquer forma pertencer aos eleitos? Eles deveriam, ao contrário, serem encorajados a examinarem-se para ver se tem dentro de si alguns dos primeiros sinais da obra do Espírito, qualquer convicção de pecado, qualquer comoção pela vergonha. Aparentemente, esta visão está bem longe da Bíblia, mas um grande número de igrejas pensava que esta era a marca de fidelidade. O que deu errado, claro, é que o equilíbrio das Escrituras foi perdido. Um elemento da verdade bíblica foi elevado a uma posição, onde este lhe foi permitido destruir ou domesticar alguns outros elementos da verdade bíblica.

De fato, o “equilíbrio das Escrituras” não é uma coisa fácil de manter, em parte porque há diferentes tipos de equilíbrio na Escrituras. Por exemplo, há o equilíbrio da diversidade de responsabilidades postas sobre nós (e.g. oração, responsabilidade no trabalho, ser pais ou cônjuges biblicamente fieis, evangelizar o vizinho, trazer um órfão ou viúva para debaixo do seu teto e assim por diante): isto significa equilibrar as prioridades dentro dos limites de tempo e energia. Há o equilíbrio das ênfases das Escrituras como estabelecida por observar a relação ao centro da narrativa da Bíblia (mais sobre este assunto no ponto XII abaixo); há também o equilíbrio de verdades, as quais não podemos a esta altura reconciliar no final das contas, mas as quais nós podemos facilmente distorcer, se não ouvirmos cuidadosamente o texto (e.g. Jesus é tanto Deus e homem; Deus é tanto o soberano transcendente e ainda pessoal; somente os eleitos podem ser salvos, e mesmo assim Deus em um certo sentido ama rebeldes horríveis tanto que Jesus chorou por Jerusalém e Deus gritou: “Acaso, tenho eu prazer na morte do perverso? — diz o SENHOR Deus; “não desejo eu, antes, que ele se converta dos seus caminhos e viva?”). Em cada caso, uma sutil diferença de equilíbrio bíblico entra em ação, mas não há saída para o fato de que se precisa de equilíbrio bíblico.

[Em breve, Deus permitindo, iremos reproduzir nesta seção mais princípios da interpretação de D.A. Carson.]



 Copyright © 1996 Modern Reformation Magazine. Todos os direitos reservados. Reproduzido com a devida autorização.  

O Dr. D. A. Carson ensina Novo Testamento na Trinity Evangelical Divinity School e tem mais de vinte livros do seu próprio punho, entre as quais emportuguês temos: “Comentário do Evangelho de João” da Shedd Publicações e “Os Perigos da Interpretação Bíblica” e “Introdução ao Novo Testamento” (co-editado com Douglas Moo e Leon Morris), ambos da Editora Vida Nova.


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