Os riscos do estudo das falácias exegéticas

de D.A. Carson

[Da introdução do livro “Os Perigos da Interpretação Bíblica” de D.A. Carson.]

Se existem razões pelas quais um estudo das falácias exegéticas é importante, há também razões pelas quais tal estudo é arriscado.

A primeira delas é o fato de que um negativismo contínuo é espiritualmente perigoso. Se a principal ambição da vida de alguém é descobrir tudo o que está errado — seja com relação à vida, seja no que diz respeito a algum componente dela, como por exemplo a exegese — essa pessoa está se expondo à destruição espiritual. Gratidão a Deus tanto pelas coisas boas quanto por Sua soberana proteção e propósito, mesmo nos fatos ruins, é a primeira virtude que se perde. A isso logo se seguirá a humildade, na medida em que o crítico, conhecendo profundamente as falhas e falácias (especialmente as dos outros!), começa a se sentir superior àqueles que ele censura. Sentimento de superioridade espiritual não é uma virtude cristã. O negativismo constante é um alimento altamente energético para o orgulho. Tenho observado que os estudantes de seminário, sem falar dos professores, não estão particularmente livres desse perigo.

Por outro lado, concentrar-se por muito tempo em erros e falácias pode produzir um efeito bastante diferente em algumas pessoas. Para aqueles que já são inseguros quanto a si mesmos ou estão profundamente amedrontados pelas responsabilidades que pesam sobre os ombros dos que foram comissionados para pregar todo o desígnio de Deus, um estudo assim poderá levá-los ao desânimo, até mesmo ao desespero. Um estudioso mais sensível poderia perguntar: “Se há tantas armadilhas exegéticas e ciladas hermenêuticas, como posso ter certeza de que estou interpretando e pregando as Escrituras da maneira correta? Como posso evitar o terrível fardo de ensinar alguma inverdade, depositar na consciência do povo de Cristo coisas que Ele próprio não impõe ou eliminar aquilo que Ele insiste em manter? Quantos danos poderei causar com minha ignorância e falta de habilidade exegética?”

Para tais estudiosos, só posso dizer que, se deixarem de se envolver em um estudo assim, estarão cometendo mais erros do que se enfrentarem as questões difíceis e aprimorarem suas habilidades. A grande diferença é que no primeiro caso você não estará consciente de suas falhas. Se estiver sinceramente preocupado com a qualidade de seu ministério, e não somente com sua insegurança psicológica, essa alternativa será inaceitável. A ignorância pode trazer satisfação, mas não é nenhuma virtude.

O perigo fundamental em todo estudo crítico da Bíblia encontra-se no que os especialistas da hermenêutica chamam “distanciamento”. O distanciamento é um componente necessário do trabalho crítico; contudo, é uma tarefa difícil e, às vezes, penosa.

Poderemos visualizar melhor o que está em risco se considerarmos um fenômeno comum em seminários cristãos.

João de Deus converteu-se quando estava no último ano do colegial. Ele ingressou na faculdade e estudou computação; mas também trabalhava com afinco em sua igreja e desfrutava de um ministério eficaz no grupo local da ABU. Seus momentos de oração eram fervorosos e freqüentes. Apesar de carências ocasionais não-supridas, quando lia a Bíblia, em geral ele se sentia como se o Senhor estivesse lhe falando diretamente. Ainda assim, havia muita coisa nas Escrituras que ele não compreendia. Quando começou a ter firme convicção de que deveria se comprometer com o ministério cristão em tempo integral, sua congregação local confirmou sua percepção de dons e chamado. Profundamente consciente de suas limitações, ele entrou para o seminário com toda a ânsia de um novato.

Depois de seis meses no seminário, o quadro é bem diferente. João gasta várias horas por dia memorizando a morfologia grega e estudando os detalhes do itinerário da segunda viagem missionária de Paulo. Ele também começou a escrever trabalhos exegéticos; mas quando consegue terminar seu estudo léxico, seu diagrama sintático, seu levantamento de opiniões críticas e sua avaliação de evidências incompatíveis, de alguma forma a Bíblia não lhe parece tão viva como outrora. Ele está perturbado com isso; parece-lhe mais difícil orar e dar seu testemunho agora do que antes de ir para o seminário. Ele não sabecom certeza por que isso acontece — não acredita que a culpa seja dos professores, muitos dos quais parecem ser cristãos piedosos, bem informados e maduros.

O tempo passa. João de Deus tem várias alternativas. Ele pode se retirar para um pietismo defensivo que denuncie rudemente o intelectualismo árido que vê a seu redor; pode ser sugado pelo redemoinho de um tipo de compromisso intelectual que oprima a adoração, a oração, o testemunho e a leitura de meditação das Escrituras; ou pode cambalear de um lado para o outro até ser resgatado pela colação de grau e voltar ao mundo real. Mas há um caminho melhor? Será que tais experiências são um componente essencial da vida no seminário?

A resposta é sim em ambos os casos. Tais experiências são necessárias; elas são causadas pelo distanciamento. Contudo, entender o processo pode capacitar-nos a lidar com ele melhor do que normalmente faríamos. Sempre que tentamos entender a linha de pensamento de um texto (ou de alguma outra pessoa, quanto a essa questão), para que possamos compreendê-lo criticamente — isto é, sem nos basear em algum padrão arbitrário, mas com razões profundas e de acordo com o significado original do autor — devemos antes de mais nada captar a natureza e o grau das diferenças que separam nosso discernimento daquele do texto. Somente então poderemos fundir proveitosamente nosso horizonte de compreensão com o do texto — isto é, somente então poderemos começar a moldar nossos pensamentos pelos do texto, de forma a verdadeiramente entendê-los. Deixar de passar pelo distanciamento antes da fusão geralmente significa que não houve uma fusão real: o intérprete acha que entende o sentido do texto, mas quase sempre simplesmente impôs seus próprios pensamentos ao que foi lido.

Em conseqüência, se uma instituição o ensina a pensar de maneira crítica (no sentido que tenho usado esse termo), você necessariamente enfrentará algum tipo de desarticulação e um incômodo distanciamento. Uma instituição inferior pode não ser tão perturbadora: os alunos são simplesmente levados a aprender, mas não a avaliar.

O distanciamento é difícil e pode ser penoso. Mas não posso deixar de enfatizar veementemente que ele não é um fim em si mesmo. Seu correlativo característico é a fusão de horizontes de compreensão. Desde que tal parte da tarefa de interpretação seja alimentada com o distanciamento, este não se mostrará destrutivo. De fato, a vida, a fé e o pensamento cristãos que surgem deste processo de duplo efeito serão mais fortes, espiritualmente alertas, perspicazes, bíblicos e críticos do que normalmente aconteceria. Alguns passos ao longo do caminho, porém, são perigosos; trabalhe seriamente para a integração de sua caminhada e compromisso cristãos integrais, e a essência deste estudo mostrar-se-á benéfica. Se você deixar de lutar por tal harmonia, provocará um naufrágio espiritual.

[Nas próximas semanas, Deus permitindo, iremos reproduzir nesta seção mais princípios da interpretação dos senhores Fee e Stuart do seu livro “Os Perigos da Interpretação Bíblica”.]

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Reproduzido com a devida autorização.

O livro de D.A. Carson do qual este texto foi extraído, “Os Perigos da Interpretação Bíblica“, pode ser encomendado daEdições Vida Nova
selecionando a capa do livro ao lado:  


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