Sempre me lembrarei daquela caminhada
de Max Lucado
Tal como o Filho do homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos. Mateus 20.28
“Que farei então de Jesus?” Pilatos foi o primeiro a fazer essa pergunta, mas desde aquela época ela tem sido feita por todos nós.
Trata-se de unia pergunta justa. Uma pergunta necessária. O que você faria com um homem assim? Chamava a si mesmo de Deus, mas usava trajes de homem. Chamava a si mesmo de Messias, mas nunca comandou um exército. Era considerado rei, mas sua única coroa foi de espinhos. O povo reverenciava-o como membro da realeza, mas seu único manto foi alinhavado com pouco caso.
A perplexidade de Pilatos não causa espanto. Como você explicaria um homem assim?
Uma das maneiras é percorrer um caminho. O caminho dele. O último caminho que ele percorreu. E foi o que fizemos. Acompanhamos seus passos e permanecemos à sua sombra. De Jericó a Jerusalém. Do templo ao jardim. Do jardim ao julgamento. Do palácio de Pilatos à cruz no Gólgota. Observamos sua caminhada. Vimos como ele se indignou no templo, se abateu no Getsêmani, sofreu na Via-Crúcis. E como saiu triunfante do túmulo.
Espero que, ao acompanhar a caminhada de Jesus, você tenha refletido sobre a sua própria, porque todos nós temos de percorrer um caminho até Jerusalém. Nosso próprio caminho para atravessar uma religião inconsistente. Nossa própria jornada pelo caminho estreito da rejeição. E cada um de nós, assim como Pilatos, devemos emitir um veredicto a respeito de Jesus.
Pilatos ouviu a voz do povo e deixou Jesus percorrer a estrada sozinho.
E nós? Faremos o mesmo?
Gostaria de concluir contando as histórias de três caminhadas, três jornadas. As histórias de três escravos… e os caminhos que seguiram rumo à liberdade.
Mary Barbour poderia nos falar da escravidão de primeira mão. Ela se lembrava do amo e da ama. Conseguia descrever a plantação, a senzala de pau-a-pique com os catres. As noites longas. Dias quentes. Chibatadas. Isolamento. Mary Barbour poderia nos contar tudo isso. Mary Barbour foi escrava.
Porém, ela preferia falar sobre liberdade. E foi o que fez.
Em 1935 um funcionário do Projeto Federal de Escritores, um órgão do governo cuja finalidade era registrar histórias de ex-escravos, bateu à sua porta em Raleigh, Carolina do Norte. Mais de duas mil pessoas foram entrevistadas. Estas, as remanescentes dos 246 anos de escravidão nos Estados Unidos, falaram com grande eloqüência.
Contaram que não tinham permissão para ler e escrever nem comprar ou vender mercadorias. Não podiam freqüentar igreja a menos que fossem convidadas. As chibatadas eram comuns. O trabalho pesado era uma realidade.
E quando chegou o momento da liberdade, não estavam preparadas. Perambulavam pelas estradas à procura de trabalho. Foram vítimas de oportunistas. A maioria voltou a trabalhar nas mesmas terras dos tempos da escravidão.
Dentre todas as recordações, a mais vívida e a mais lembrada era a hora da liberdade. A noite em que os ianques chegaram. O dia em que o amo lhes disse que estavam livres. A manhã em que entraram na “casa grande” e a encontraram vazia.
E dentre as histórias de alforria, nenhuma foi tão específica como a de Mary Barbour. Ela contava dez anos de idade na noite em que seu pai a acordou e a levou até uma carroça que os conduziria à liberdade.
Antes de você ler sua história, tente visualizá-la sentada na varanda de sua casa em Raleigh. O ano é 1935. Mary Barbour tem mais de 80 anos. Balança o corpo enquanto pensa, um corpo franzino afundado em uma enorme cadeira. Os dedos frágeis tremem quando ela coça o nariz. Os olhos cansados, porém espertos, fixam-se no infinito como se estivessem contemplando um pedaço de terra no horizonte. Você se encosta na coluna de madeira e ouve sua história.
Uma das primeiras coisas de que me lembro é papai me acordando no meio da noite, vestindo-me no escuro e dizendo-me o tempo todo para ficar calada. Um dos gêmeos choramingou, e papai colocou a mão em sua boca para mantê-lo em silêncio.
Depois de estarmos todos vestidos, ele saiu e deu uma espiada por alguns instantes. Em seguida, voltou e nos pegou. Saímos sorrateiramente da casa e percorremos um caminho no meio da mata. Papai carregava um dos gêmeos e segurava-me pela mão e mamãe carregava as outras duas crianças.
Penso que sempre me lembrarei daquela caminhada, com os arbustos batendo em minhas pernas, o vento soprando nas árvores e as corujas e outros pássaros noturnos empoleirados em árvores enormes, piando e chamando a atenção uns dos outros. Eu ainda estava meio dormindo e andava com o corpo tenso, mas de repente atravessamos a plantação de ameixas e lá estavam as mulas e a carroça. Havia um acolchoado no chão da carroça onde nós, as crianças, nos deitamos. Papai e mamãe subiram na boléia e seguimos pela estrada.
Eu estava com sono, mas também assustada. Enquanto a carroça rodava, ouvia papai e mamãe conversarem. Papai estava contando a mamãe como os ianques chegaram à plantação, queimaram as tulhas, os defumadouros e destruíram tudo. Papai disse em voz baixa que os ianques arrastaram o amo Jordan até as corredeiras perto de Norfolk, e que ele roubou as mulas e a carroça e fugiu.[1]
Vagas lembranças de libertação. Alforria demorada. Seis décadas depois, o vento ainda sopra nas árvores, e as corujas e os pássaros noturnos ainda chamam a atenção uns dos outros na memória de Mary Barbour.
A caminhada rumo à liberdade jamais é esquecida. A trajetória da escravidão até a alforria permanece sempre viva na memória. É mais do que uma simples caminhada, é uma libertação. Quebram-se os grilhões e, talvez pela primeira vez, vêem-se os primeiros raios da liberdade. “Penso que sempre me lembrarei daquela caminhada…”
Você se lembra da sua? Onde se encontrava na noite em que a porta foi aberta? Lembra-se do suave toque da mão do Pai? Quem caminhou a seu lado no dia em que você foi libertado? Você ainda se lembra da cena? Sente a estrada sob seus pés?
Espero que sim. Espero que em sua alma esteja permanentemente registrado o momento em que o Pai tocou em você na escuridão e o conduziu pelo caminho. É uma lembrança incomparável. Porque quando ele nos liberta, sentimo-nos livres de verdade.
Ex-escravos sabem descrever a hora da libertação.
Posso descrever a minha?
Aula de estudos bíblicos em uma pequena cidade no oeste do Texas. Não sei dizer qual o fato mais extraordinário daquele dia: se foi o professor tentando ensinar o livro de Romanos a um grupo de crianças de dez anos ou se foi a lembrança que tenho do que ele disse.
A classe compunha-se de cerca de uma dúzia de alunos em uma pequena igreja. Minha carteira era toda riscada na parte superior e tinha goma de mascar grudada embaixo. Das vinte carteiras ou pouco mais espalhadas na sala, só quatro ou cinco estavam ocupadas.
Sentávamos todos no fundo da classe, orgulhosos demais para demonstrar interesse pela aula. Calças jeans engomadas. Tênis da última moda. O lento pôr-do-sol de verão ilumina a vidraça com seus raios dourados.
O professor era um homem diligente. Ainda vejo sua barriga despontando sob o casaco que ele nem mesmo tenta abotoar. A gravata chega até o meio de seu peito. Ele tem uma verruga preta na testa, tom de voz suave e sorriso bondoso. Apesar de não ter habilidade para lidar com os meninos da geração de 1965, ele não sabe disso.
Suas anotações estão empilhadas debaixo de unia pesada Bíblia de capa preta. Ele está de costas para nós, e seu paletó movimenta-se para cima e para baixo enquanto escreve no quadro-negro. Fala com genuíno entusiasmo. Não é um homem dramático, mas nesta noite ele se mostra fervoroso.
Só Deus sabe por que prestei atenção em suas palavras naquela noite. Seu texto baseou-se no capítulo seis de Romanos. O quadro-negro estava todo rabiscado com palavras compridas e diagramas. Em um determinado momento no qual o professor descrevia como Jesus foi enterrado e ressuscitou, algo estranho aconteceu comigo. A jóia da graça foi levantada e virada, de modo que eu pudesse vê-la por um novo ângulo… e isso me fez perder o fôlego.
Não vi nenhum código de princípios morais. Não vi nenhuma igreja. Não vi os dez mandamentos nem demônios horripilantes. Vi apenas o que aquela garota de dez anos — Mary Barbour — viu. Vi meu Pai entrar em minha noite escura, acordar-me e guiar-me ou melhor, carregar-me — para a liberdade.
“Penso que sempre me lembrarei daquela caminhada.”
Eu não disse nada ao professor. Não disse nada a meus amigos. Não tenho certeza se disse algo a Deus. Não sabia o que dizer. Não sabia o que fazer. Mas havia uma coisa que eu sabia com certeza — queria estar com ele.
Contei a meu pai que estava pronto para entregar minha vida a Deus. Ele achou que eu era jovem demais para tomar essa decisão. Perguntou-me o que eu sabia. Respondi que Jesus está no céu e que eu desejava estar com ele. E para meu pai, isso foi o suficiente.
Até hoje pergunto a mim mesmo se meu amor tem sido tão puro como foi naquele primeiro momento. Sinto saudade da pureza de minha fé. Se alguém me tivesse dito que Jesus estava no inferno, eu concordaria em acompanhá-lo. A profissão de fé e o batismo seguiram-se naturalmente, como aconteceu com Mary Barbour ao subir na carroça.
Veja, quando seu Pai chega para libertá-lo da escravidão, você não faz perguntas, apenas obedece. Segura em sua mão. Segue o caminho. Deixa a escravidão para trás. E você não esquece nunca, nunca mesmo.
Mary Barbour não esqueceu. Eu não esqueci. E Tigyne também não.
Tigyne pertencia à tribo Wallamo do interior da Etiópia. Nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial, alguns missionários levaram a mensagem de Cristo a essa tribo que cultuava Satanás. Tigyne foi um dos primeiros a se converter. Raymond Davis foi o missionário que o conheceu… e o libertou.
Tigyne era um escravo. Sua decisão de seguir a Jesus desgostou seu amo, que impediu Tigyne de freqüentar cultos e aulas de estudos bíblicos. O amo espancava e humilhava Tigyne por causa de sua fé. Mas esse era o preço que o jovem Tigyne estava disposto a pagar.
Havia um outro preço, contudo, que ele não podia pagar. Não tinha condições de comprar sua liberdade. Seu amo contentava-se em receber apenas doze dólares para libertá-lo, mas para aquele escravo que nunca recebera salário, tratava-se de uma quantia exorbitante.
Quando os missionários souberam que a liberdade de Tigyne pode-ria ser comprada, reuniram-se para discutir o assunto, juntaram o dinheiro e pagaram a quantia exigida pelo amo.
Agora Tigyne estava livre — espiritualmente e fisicamente. Nunca teve como pagar sua gratidão aos homens que o libertaram.
Logo após o dia da libertação, os missionários foram expulsos da Etiópia. Raymond Davis só retornou a Wallamo após 24 anos. Durante todo esse tempo Tigyne foi um testemunho vivo do poder da libertação. Queria muito ver Davis novamente.
Ao ouvir falar que seu amigo estava a caminho, resolveu ir até o posto missionário durante vários dias seguidos para esperá-lo. Os dias do calendário e as horas não significavam nada para Tigyne, portanto ele ia diariamente até o posto à espera de Davis.
Finalmente Davis chegou em um automóvel dirigido por um colega missionário.
Quando Tigyne viu o veículo virar a esquina, correu até ele, segurou a mão de Davis e começou a beijá-la repetidas vezes. O motorista reduziu a velocidade do automóvel para que Tigyne pudesse acompanhá-lo. Tigyne corria e gritava a seus amigos: “Vejam! Vejam! Um dos homens que me resgataram está de volta!”
Finalmente o automóvel parou. Davis desceu e Tigyne ajoelhou-se, passou os braços ao redor das pernas do amigo e começou a beijar seus sapatos empoeirados. Davis tomou-o pela mão e levantou-o, e ambos abraçaram-se chorando.[2]
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Três ex-escravos. Uni liberto do homem, outro liberto do pecado e o terceiro liberto de ambos. Três caminhadas. Um destino — a liberdade.
Uma caminhada da qual eles nunca se esquecerão.
Penso que sempre me lembrarei daquela caminhada… Oro para que você nunca se esqueça de sua própria caminhada nem da dele: a última caminhada de Jesus de Jerico a Jerusalém. Porque foi nessa caminhada que ele prometeu libertar você.
Sua última caminhada no templo de Jerusalém. Porque foi ali que ele denunciou a religião inconsistente.
Sua última caminhada ao Monte das Oliveiras. Porque foi ali que ele prometeu voltar e levar você para casa.
E sua última caminhada do palácio de Pilatos até a cruz no Gólgota. Descalço, pés ensangüentados, esforçando-se para subir por um caminho estreito de pedras. Tão vívida quanto a dor de carregar a cruz sobre as costas esfoladas é a visão que ele tem de vocês dois caminhando juntos.
Ele conhecia a hora em que poderia entrar em sua vida, em sua choupana escura para acordá-lo e guiá-lo rumo à liberdade.
Mas a caminhada ainda não terminou. A jornada não está completa. Há uma outra caminhada a ser feita.
“Eu voltarei”, ele prometeu. E para provar isso, ele rasgou o véu do templo em duas partes e abriu os sepulcros. Ele voltará.
Ele, assim como o missionário, voltará para seus seguidores. E nós, assim como Tigyne, não conseguiremos controlar nossa alegria.
“Aquele que nos resgatou está de volta!” gritaremos.
E então a jornada terminará e tomaremos assento em seu banquete… para sempre.
Espero vê-lo à mesa.
Veja também de Max Lucado“Rostos na Multidão” e “Ilustrações Sobre Liberdade”
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[1] Hurmence, Belinda (ed.) My Folks Don’t Want Me To Talk About Slavery, Winston Salem, N.C.: John F. Blair Publising, 1984, pp. 14-15. [2] Davis, Raymond. Fire on the Mountain (não foram encontradas informações sobre o editor).
Do livro “Quando os Anjos Silenciaram” de Max Lucado, Copyright © 1992 Editora United Press. Todos os direitos reservados. Tradução: Maria Emília de Oliveira