Alguns sentem a preocupação de que dizer que a Bíblia precisa ser interpretada implica que ela seja imperfeita.

 

Outra preocupação inteiramente legítima é o medo de que dizer que a Bíblia precisa ser interpretada é dar a entender que ela é insuficiente ou imperfeita. Segundo este raciocínio, se dissermos que a Bíblia precisa ser interpretada estamos dizendo com isso que ela é de uma certa forma falha, por não poder se comunicar diretamente, sem ajuda, a qualquer pessoa em qualquer época.

 

Conseqüentemente (segue-se o raciocínio), se a Bíblia é de qualquer forma falha ou insuficiente, então ela não poderia ser a Palavra perfeita e inspirada por Deus. Também ela não poderia servir como guia de confiança sobre nossas vidas espirituais ou autoridade absoluto para o Cristão. O problema com esta preocupação é que ela não compreende aonde existe a falha, a possibilidade de erro e a insuficiência.

 

Vale a pena a seguinte observação:

“É verdade que, ao nível mais fundamental os Cristãos gozam de um acesso direto a Deus e que seu Espírito se comunica diretamente com o nosso espírito por meio das Escrituras. Por outro lado, não devemos permitir que esta verdade preciosa se degenera num senso de perfeita compreensão particular. Para começar, nossos limites e pecaminosidade interferem no processo de compreensão perfeita. E, mais uma vez, estamos separados por uma grande distância de tempo e cultura dos escritos que compõem a Bíblia.”[1]

 

Dizer que a Bíblia precisa ser interpretada não implica que ela seja falha ou imperfeita. Nem tampouco significa que ela perde sua autoridade ou infalibilidade. Precisamos reconhecer que o que é falha não é a Bíblia, mas a nossa compreensão. O que carece de perfeição não é a Palavra de Deus, mas as nossas mentes. O que precisa ser preparada e transformada não é a mensagem divina, mas os nossos meios de raciocinar e pensar.

 

Alguns pensam que o Espírito Santo naturalmente nos protege de enganos e equívocos em relação à interpretação da Palavra. Pensam várias pessoas que, como Cristo prometeu que o Espírito ia guiar seus primeiros discípulos à toda verdade (João 16:13), que Ele continua a guiar hoje os seguidores de Jesus quando lêem as Escrituras de modo que não sejam enganados. Vale a pena uma outra observação:

“Queremos saber o que a Bíblia significa para nós – e isso é certo. Não podemos, no entanto, fazê-la significar qualquer coisa que nos agrada, e depois dar ao Espírito Santo o “crédito” por ela. O Espírito Santo não pode ser conclamado para contradizer a Si mesmo, e Ele é Aquele que inspirou a intenção original.”[2]

 

 

O Espírito Santo nos ajuda e nos guia no entendimento da Palavra de Deus (1 Cor 2:10-16; 1 João 20:27). Mas o Espírito tem que fazer isso numa luta constante com as nossas mentes humanas que são falhas. O mesmo Espírito tem como propósito ajudar o homem a resistir sua tendência pecaminosa (Rom 8:13; Gal 5:17). Mas, o Espírito tem que fazer isso contra a fraqueza natural da nossa vontade humana.

 

Da mesma forma que o Espírito Santo luta contra a vontade humana e fraca para nos livrar do pecado, o Espírito luta contra nossas mentes humanas para nos dar discernimento na Palavra de Deus. Apesar de ter a ajuda do Espírito que é perfeito, nosso entendimento das Escrituras não é perfeito. Portanto, apesar de sermos guiados pelo Espírito Santo, nossas interpretações da Bíblia estão sempre sujeitas ao erro.

 

É possível que parte do problema esteja com a nossa definição do processo de interpretação. Talvez seria mais correto dizer que a interpretação da Bíblia é: “aquele processo pelo qual a mente, o raciocínio, a lógica e todos os meios de comunicação do homem são treinados e preparados para receber, compreender e daí comunicar a Palavra de Deus.”

 

Pensar que todos podem chegar à Bíblia pela primeira vez, abri-la e compreender com perfeita lucidez tudo que ela está dizendo é um pensamento sedutor, mas enganoso. Isto é um pensamento bastante comum, mas, isto é um pensamento cheio de presunção por nossa parte. A Bíblia é um vaso perfeito para a comunicação da vontade de Deus. Mas a minha mente é um vaso imperfeito para receber aquela comunicação perfeita. A idéia de que qualquer pessoa pode abrir a Bíblia e logo entender, sem ajuda, tudo que ela ensina não é uma idéia ensinada nem apoiada pela Palavra de Deus.

 

De fato a própria Bíblia ensina o contrário. Ela ensina claramente que sempre houve e sempre haverá uma necessidade para pessoas especialmente dotadas por Deus e treinadas e equipadas por Ele para interpretar e ensinar a Bíblia.

 

·        Jesus, no contexto de interpretar uma das sua próprias parábolas exortou seus discípulos a serem como o bom “escriba” –  “Por isso, todo escriba versado no reino dos céus é semelhante a um pai de família que tira do seu depósito coisas novas e coisas velhas.”  – Mateus 13:52

·        Jesus disse: “…eis que vos envio profetas, sábios e escribas…” – Mateus 23:34

 

A palavra usada por Jesus nos dois versículos citados acima é a mesma usada para os famosos intérpretes da lei Judaica do primeiro século, os “escribas” (gr. grammateus). Na época de Jesus o grammateus era um intérprete oficial. Com poucas exceções, “grammateus no NT sempre tem seu significado judaico de ‘erudito na Tora’, ‘rabino’, ‘teólogo ordenado’.[3]

 

Freqüentemente estes escribas foram associados aos fariseus (Mat. 5:20; 12:38; 15:1). Nos dias de Jesus não tinham boa fama. Mesmo assim, Jesus afirmou que o ministério da interpretação da Palavra continuaria a existir. Em referencias como Mateus 13:52 e 23:34 Jesus não está incentivando seus seguidores a seguirem a hipocrisia dos líderes religiosos da sua época. Mas, segundo Jesus, haveria escribas do Reino, homens dotados com a missão de interpretar as Escrituras, e Jesus mesmo prometeu enviar escribas para seus seguidores.

 

Vemos que Jesus viu a prática da interpretação como legítima e necessária. Outras passagens nos mostram que os primeiros seguidores de Jesus tinham a consciência de que haveria a necessidade de membros da Igreja especialmente treinados para interpretar a Bíblia.

 

·        “Havia na igreja de Antioquia profetas e mestres…” – Atos 13:1

·        Jesus preparou especialmente para a edificação da sua igreja homens com o dom de “mestre” (1 Cor 12:28-9; Efé 4:11)

·        Paulo era “pregador, apóstolo e mestre” (1 Tim 2:7; 2 Tim 1:11). Evidentemente a função de cada um destes dons era diferente, como também parece nas listas de 1 Cor 12:28-9 e Efé 4:11.

 

Se era necessário apenas anunciar o evangelho e não interpretá-la para o povo, Deus poderia ter mandado apenas pregadores ou apóstolos. Mas, ele mandou também evangelistas e mestres, homens com o dom e a responsabilidade de interpretar a Palavra e aplicá-la corretamente (veja 2 Tim 2:24 e 4:2-4). O pastor também tem que ser um homem preparado e equipado para ensinar (1 Tim 3:2; Tito 1:9). Vemos aqui por meio das providencias de Deus que Ele mesmo previu a necessidade de alguns irmãos especialmente preparados para interpretar e ensinar as Sagradas Escrituras.

 

Vendo tantos exemplos bíblicos fica evidente que Deus não deu a entender que a Bíblia é uma coisa simples e fácil de entender. A mensagem do Evangelho é simples. O amor de Deus por nós não é complicado. Vários aspectos da Palavra de Deus são fáceis de compreender. Mas, vários outros aspectos são bastante sutis e difíceis para nós compreender, precisando passar pelo processo de interpretação. É justamente por causa desta necessidade que Deus preparou certos homens com o dom de estudar e ensinar sua palavra.

 

Portanto, é enganosa a impressão que alguns tem de que, quando abrem e lêem a Bíblia, as conclusões a que cheguem, as deduções e idéias que vêem às suas mentes, são a pura verdade de Deus, sem qualquer influência particular. Todos nós somos o resultado, a soma, de várias influencias familiares, culturais, sociais e espirituais. Todas estas influencias e idéias em certos momentos podem servir para esclarecer algo na Palavra de Deus, e em outros momentos podem obscurecer aquela Verdade Divina.

 

É por isso que precisamos ser treinados e preparados para receber aquela Mensagem. Precisamos ser treinados para poder distinguir entre aquilo que partiu do texto original e aquilo que partiu de uma influência da nossa cultura, ou criação particular ou simplesmente da nossa imaginação. Também precisamos ser treinados e preparados para comunicar aquela mesma Mensagem de forma compreensível e clara ao povo de Deus. Tudo isso faz parte do processo que chamamos de “interpretação”. Lembramos que não é a Bíblia que é imperfeita, e sim, a nossa compreensão dela. Portanto é perfeitamente natural que nós precisamos estudar e nos esforçar para ter condições de interpretar ela de forma madura e responsável. O nosso site de Hermeneutica.com.br é dedicado a ajudar neste processo.



[1] Moisés Silva, “Deus, Linguagem e Escritura” (God, Language and Scripture), (Grand Rapids: Zondervan, 1990), p. 129 Tradução de inglês para português do autor.

[2] Gordon D. Fee e Douglas Stuart “Introdução” do livro Entendes o que Lês? (São Paulo: Edições Vida Nova, 1982), p. 26.

[3] N. Hillyer, artigo “Escriba” em Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento  (São Paulo: Edições Vida Nova, 1982), Vol 2, p. 92.


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